sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

ESCRIT@TOP.COM - CONTO IX «AMANHÃ RECOMEÇAMOS»

 AMANHÃ RECOMEÇAMOS (1)

Fotografia: @André Sampaio

Há muito tempo, quando os anos ainda não se contavam, num lugar longínquo da Ásia, dominava o reino de Ashka. Era um lugar pacífico. No entanto, existia uma jovem escrava, mulata, baixa, cabelos longos e encaracolados, tão maltratada pelo seu senhor, que pensava ser melhor morrer.

Certo dia, após ter sido chicoteada tantas vezes de seguida, que parecia terem passado anos, ela decidiu fugir. Correu e correu e, quando acabaram as suas forças, viu-se numa caverna com cristais tão brilhantes quanto o próprio sol. No meio da mesma, habitava uma árvore, com frutos tão encantadores como as mais belas joias.
A tentação era tão forte, que quase não conseguia resistir. Então, a pobre escrava começou a ouvir: «Come-me, come-me, vá despacha-te! Do que estás à espera?!». Jogou a mão ao fruto e comeu como se não houvesse amanhã. De seguida, sentiu uma energia a fluir pelo seu corpo e ouviu uma voz rouca, similar ao gemido de um fantasma, que dizia repetidamente: «Amanhã recomeçamos.» Confusa e desnorteada, a escrava repetiu também a frase e, mal dando tempo para piscar os olhos, já estava a ser chicoteada.
A noite caiu. A escrava fechou os olhos e exclamou para si: «Oh!». Ela viajara no tempo. A sua confiança ganhara o tamanho de uma galáxia e, na noite seguinte, quando as estrelas dominavam o vasto céu, tentou fugir da escravatura, repetindo vezes sem conta: «Amanhã recomeçamos.» A viagem fora, porém, tão longínqua, que agora ela contava sessenta anos.
Devido à sua avançada idade, já não tinha serventia como escrava e, por isso, foi jogada aos cães esfomeados. Desesperada, atordoada pela luz do dia, gritou sem parar até lhe faltar a voz: «Amanhã recomeçamos. Amanhã recomeçamos. Amanhã…». Percebendo que não funcionava, caiu desolada, perdendo as suas forças, e morreu ali mesmo, devorada pelos cães famintos.

 André Sampaio, 9.º B, n.º 2.

(1) Este texto teve como fonte de inspiração o conto «A Aia», de Eça de Queirós.

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