Acabara de amanhecer, mas já se juntara muita gente, sobretudo gente jovem, pronta para a viagem «e há de partir logo essora».
O chamamento «À barca, à
barca, oulá!, / que temos gentil maré» era do conhecimento geral naquele
dia 16 do mês de fevereiro de 2023. Não obstante, não havia cais nem barcas nem
barqueiros. Nem o destino era o Inferno ou o Paraíso.
Quanto aos passageiros… qualquer
semelhança mínima com as personagens-tipo vicentinas seria pura ficção.
Estariam todos? Faltava
alguém? Era melhor aguardar mais um bocadinho: «veremos se vem alguém, /
merecedor de tal bem, /que deva de entrar aqui».
Mas às sete da manhã em
ponto, «Asinha, que se quer ir! / Ó que tempo de partir». Sem arrais que
impedisse ou condicionasse a entrada e sem «cárrega» que embaraçasse, todos
os passageiros se instalaram confortavelmente sem ao menos perguntar «E pera
onde é a viagem?». Esta era, aliás, uma questão desnecessária, já que todos
conheciam detalhadamente a rota.
Rumou-se a Lisboa, num
destino literário, artístico e cultural, ao encontro de mestre Gil Vicente e da
sua obra, numa Lisboa do século XVI.
O recuo no tempo, a viagem
ao passado, começou no Museu Nacional da Arte Antiga. Ao observar os Painéis
de São Vicente (presentemente em restauro), deparámo-nos com uma solene e
monumental assembleia representativa da Corte e de vários grupos sociais da
época vicentina. Na pintura O Inferno, de um mestre português
desconhecido, contemporâneo de Gil Vicente, fomos confrontados com uma
impressionante imagem do Inferno, que inventaria os suplícios eternos em
relação aos pecados capitais. E ao observar a Custódia de Belém, o
dramaturgo Gil Vicente foi, por momentos, esquecido para nos deixar
deslumbrados com o seu mérito artístico na área da ourivesaria.
O regresso à Lisboa
contemporânea fez-se na hora de almoço: o bulício atribulado do trânsito, uma
passagem rápida pelo Parque das Nações e uma refeição ligeira tão do agrado dos
jovens viajantes trouxeram-nos de volta à realidade do século XXI.
Mas o retorno ao século XVI
estava agendado para as 15 horas, no espaço «O Sonho», para assistência à
representação da peça Auto da Barca do Inferno, numa excecional
encenação de Ruy Pessoa. Aqui, o elenco sabe tirar partido dos efeitos de
cómico e, sem nunca desrespeitar o texto de Gil Vicente, trazem para cena apontamentos
atuais, numa interessante interação com os espetadores, que envolvem e cativam
a assistência. Mas o aviso ficara feito:
Apreciando os Painéis de São Vicente, em restauro, no Museu Nacional da Arte Antiga. |
Escutando atentamente a explicação sobre a pintura O Inferno. |
Ouvindo os esclarecimentos sobre a Custódia de Belém. |
O cenário e os atores do Auto da Barco do Inferno no final da representação. |
Uma das nossas alunas em palco. |
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