«Acontece um big bang invisível, muito discreto, sem
consequências dignas de nota, ninguém deu por nada. Vai haver um entardecer e
uma manhã; o senhor Swann há-de vir jantar nessa noite, está um dia magnífico,
é tempo de férias, e, apesar de tudo, houve qualquer coisa que falou.
Então, é o fim de tudo
o resto? Claro que não; é só um regresso à clandestinidade, a uma forma de
selvajaria, no sentido em que Claudel dizia que Rimbaud era «um místico em
estado selvagem». Às vezes acontece-nos cruzarmo-nos com jovens vagabundos como
estes, ainda incendiados por uma palavra nascida nas profundezas de uma
biblioteca. Quem lhes falou? Que livro foi esse? A quem pertencem essas
palavras espantosas? Não há resposta.»[1]
Ou talvez haja. Não
uma. Dezenas: Catalina, Uruguai,
«O Principezinho», Antoine de Saint-Exupéry e o segredo da raposa, antiquíssimo,
mas - juro-te - só o ouvirás muito depois (escuta bem, «O essencial é invisível
para os olhos...»); Mariana, Cidadã
do Mundo, «Se isto é um Homem»,
Primo Levi, lembra-te, sim tu, lembra-te, lembra-te, «acontece facilmente, a quem tudo perdeu,
perder-se de si próprio»; Tomás, Portugal, Monchique, «O conto da ilha
desconhecida», José Saramago «acordou» - imagine-se! - «abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele,
confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de
bombordo ou o
de estibordo.»
Há ainda o Leonardo, a Mein, a Catarina e o «Fantasma de
Canterville», que levaram a professora (literalmente!) a correr para a livraria
mais próxima ao encontro de Oscar Wilde só para aprender isto, que afinal tínhamos
todos razão: «Pobre Sir Simon! Devo-lhe muito. Sim, não te rias, devo mesmo.
Ele fez-me ver o que é a Vida, e o que significa a Morte, e por que razão o Amor é mais forte do que ambos.» E o Rafael, na sua primeira
vez, com «A arte subtil de saber dizer...» coisas bonitas, inchado de orgulho
por ter comprado o livro naquela livraria famosa «onde a professora vai» (e
sorri amorosamente, o espertinho, eu sorrio depois, às escondidas). A Sara que
chora abraçada ao «Rapaz de pijama às riscas». O Bruno que carrega «35 quilos
de esperança». O Gonçalo a iluminar-se «Numa escuridão bonita». O Bernardo a
saltitar no «Montanário» e eu,
de asas abertas, ao encontro do corvo no sobreiro. Agustina Bessa-Luís, «A mãe de
um rio» e de todos nós, a doirar os dedos do segundo Rafael. Carolina, fortíssima
no seu casaco vermelho, a passar para o outro lado de nós só porque disse: «Bom
dia. O meu nome é Veronika e decidi morrer». O João que trocou o Senhor Henri
(escolheu o cérebro) pelo Velho que Lia Romances de Amor (falou o coração). A Patrícia, a aclarar muito bem por que motivo
não achou graça ao Segredo da Tribo Perdida, talvez o mesmo não tivesse
sido lá muito bem contado pelos Primos na Nova Zelândia, o certo é que o fez com
bastante elevação, quem sabe por ter ouvido dizer que tem todo o direito de não
gostar de um livro! (Seria
esse o segredo maori?) A Joana que habitou em todos os minutos e mais alguns
apenas porque viu bem demais «A cor do céu» e, por essa razão, quase cegou de
espanto e paixão. O Mário, digníssimo, a explicar que o Livro era, efetivamente, melhor do que o Filme porque «mais
suave». O Ibrahima, a
atropelar-se nas palavras, com a ternura africana de quem chama sempre a
lentidão, colocando-se mais à
frente, levando a professora atrás, na emoção claro, «porrrrrque o Fernando Pessoa é muita coisa». Sabes? Tens toda a razão.
E Ela. A dizer que não tinha lido porque lhe faltava coragem. Quase. Quase dá
vontade de citar Daniel Pennac e dizer (para dentro, baixinho, um sussurro
apenas) pois sim, pois sim, «o verbo ler não suporta o imperativo»[2].
E a mim faltam-me as
páginas. O espaço. Para contar. Para vos Contar.
Digo-vos: no que ao
ensino da língua portuguesa, e à formação cívica, diz respeito, deve haver
poucas atividades tão completas e enriquecedoras como «À Roda dos Livros». É simples,
trata-se disto: ler um livro e apresentá-lo à turma, introduzindo no discurso uma
«palavra-mistério». Desejavelmente, muito desejavelmente, de forma continuada,
uma apresentação por período. A imagem é esta: um bater de asas (pensemos numa
borboleta) a multiplicar-se em todas as direções. Saber ouvir; saber
expressar-se; saber sintetizar; saber argumentar; saber criticar; saber
avaliar; saber avaliar-se; ser responsável; ser criativo; refletir; rir,
chorar, poder errar. Crescer.
Agradecer. À professora
bibliotecária da Escola Básica Manuel do Nascimento, pela sua saudável
teimosia, pela sua infinita paciência. Por dizer que recebe tão mais do que dá.
«Mas a literatura é algo de
transversal à nossa sociedade. Diz respeito aos escritores que a escrevem e,
por isso, nos escrevem. Diz respeito às instituições e aos mecanismos sociais
que a ela estão indissociavelmente ligados – editores, bibliotecas, jornalismo
e imprensa em geral, escolas e universidades. Diz respeito a uma
responsabilidade pedagógica e social que ultrapassa e conjuga os diferentes
tipos de saberes e formas de conhecimento. E diz respeito, em primeira e também
última instância, aos leitores, aqueles que fazem das obras algo que nunca se
encontra irremediavelmente passado, mas se faz a cada momento presente e
aponta, afinal, para a imprevisibilidade do futuro.»[3]
Livros, o teu peso, o
teu cheiro, sim, deixem-me ser romântica só esta vez, livros, o teu peso, o teu
cheiro, o teu corpo, nós à tua volta. Menos
um círculo fechado. Mais um degrau numa porta aberta. Uma Roda em jeito de
Espiral.
Na era do ruído, uma
biblioteca: também o Silêncio.
Na era da imagem, que
desliza fácil e veloz ao sabor dos dedos, uma biblioteca: espaço de Rigor e
Análise.
Na era dos sentimentos
repetidos até à exaustão, uma biblioteca: proposta nua de Verdade.
Na era da Técnica, uma
biblioteca, nasce um lugar para o Imprevisível. Nasce um lugar para o Tempo morar.
Talvez a Génese: no início era o Verbo. A suspensão do Tempo: o Intervalo
existe. Um lugar, enfim, para a Flor que não vai abrir hoje, só uma, duas, três
Madrugadas depois de acharmos
que agora sim. Afinal, a Raíz (que a suporta) raramente se vê. Tinha razão a
Catalina, digo Saint-Exupéry. Ou terá sido a Raposa? Talvez o Principezinho? A
quem pertencem, afinal, essas palavras espantosas?
[1] Michel Crépu, «Esse vício ainda impune» in George
Steiner, «O Silêncio dos Livros», Lisboa, Gradiva, 2007, p.71.
[3] Helena
Carvalhão Buescu in A.A.V.V., «Presente e Futuro: A Urgência da Literatura», 1º
Encontro no CCB, Lisboa, Deca, 2014, p.17.
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Autora do texto: Professora de Português do 8.º ano
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