CRÓNICA IV
Fotografia de Artur Pastor (1922-1999), da série «Profissões. Panificação, décadas de 50/60» in https://arturpastor.tumblr.com/post/145314602799 (consultado a 10.12.2020) |
O TEMPO INDESEJADO
Enquanto me
dirijo para casa, começo a pensar... Penso que, antigamente, quando as pessoas
iam na rua, se cumprimentavam sempre. Agora, a única coisa que se limitam a
fazer é a colocar os «headphones» e simplesmente ignorar a existência das
outras pessoas.
Quando chego ao
meu bairro, que sempre tem sido o sítio onde vivo, recordo que passei muitos momentos
felizes, a andar de bicicleta na rua, quando as casas ainda só tinham um andar,
quando as portas se mantinham abertas, e a confiança das pessoas era pura.
Quando toda a
gente se conhecia e a padaria era um lugar especial, onde íamos todos os
domingos como se fosse uma obrigação. Lembro-me do cheiro do pão caseiro a sair
do forno e a cara de alegria das pessoas quando o pão era feito à nossa frente.
Agora nestes
tempos modernos, é entrar no supermercado chateado, comprar o pão que for mais
barato, e limitar-se a ir embora sem cumprimentar rigorosamente ninguém.
Era uma união sem
igual nos velhos tempos em que toda a gente sabia o nome uns dos outros, em que
era sinal de boa educação e preocupação perguntar como está a família.
O que me deixa
realmente triste é olhar para o terreno onde cresci e ter de olhar para cima sem
poder ignorar o facto de terem transformado o terreno onde eu cresci numa zona
de comércio bruto. Para piorar, agora já nem um «bom dia» se diz às pessoas
para alegrar as manhãs, a não ser que tenham, claro, muito bom aspeto...
Guilherme Carvalho, 9.º B, n.º 9.
Michelangelo Buonarotti (1475 – 1564), «Criação de Adão» (pormenor), c.1511.) |
O JANTAR SILENCIOSO
Numa noite, fui jantar com alguns familiares a um restaurante. Entrámos,
sentámo-nos, pedimos a comida e, enquanto esperava, olhei ao meu redor. Numa
das mesas estava um grupo de adolescentes. Todos ao telemóvel. Ninguém dizia
nada, e tinham a comida na mesa, porém, mal comiam. Olhei para outra mesa e
estava uma família a jantar. Os pais estavam num computador a trabalhar,
enquanto o filho chorava. Os pais para o calarem, deram-lhe o telemóvel, e ele
parou.
Quando vi aquilo fiquei a pensar. Quando eu tinha aquela idade, eu nem
sabia o que era um telemóvel, só me interessava correr e brincar. Antes, os
restaurantes eram muito barulhentos, só se ouvia as pessoas a falar, mas naquela
noite parecia silencioso. Eu não gostava do barulho, mas naquele instante,
senti falta dele! Com o grupo de adolescentes eu identifiquei-me mais, pois eu,
quando estou com os meus amigos, também uso sempre o telemóvel. Mas quando
estou com a minha família é que não dá para fazer isso. Há sempre alguém que,
antes de começarmos a comer, diz para guardarmos os telemóveis. E todos os
guardamos. Só quando o jantar acaba é que podemos voltar a mexer nos aparelhos.
Volto para casa e conto à minha mãe o que havia acontecido. Então, ela
conta-me as suas histórias, de quando era pequena, num tempo em que não havia internet.
E pergunto-me se as pessoas não seriam mais felizes.
Leonor Fernandes, 9.ºA, n.º 8.
Amedeo Modigliani (1884 – 1920), «Mulher com Casaco Branco», 1917 |
Sábado de manhã saio de casa e enfio o grande molho de chaves de todos
os feitios, formatos, cores e tamanhos no bolso das minhas calças novas. No
corredor do prédio paro para atar os meus ténis brancos e vermelhos e prossigo
o meu caminho monotonamente. À saída do prédio vejo a dona Ermelinda, nos seus
60 anos, com um saco de pano na mão e a pequena, velha e elegante carteira de
cabedal na outra e pergunto-lhe para onde vai e se quer companhia, mas ela não
responde. Está com um ar pensativo e sorumbático.
Sigo-a rua abaixo, com certa naturalidade, a tentar quebrar o gelo, mas
ela continua pensativa. Entramos no metro e ela paga o bilhete de forma
peculiar, como se não fosse algo normal.
Saímos do metro na baixa: eu vou comprar um pacote de televisão novo e
ela entra no supermercado. À saída encontramo-nos e o caminho de regresso é
feito no maior dos silêncios. Eu acompanho-a durante o tempo todo sem proferir
uma única palavra.
À entrada do prédio ela vira-se para mim e convida-me para ir jantar com
ela. Aceito. Vou para casa arranjar-me e instalar o novo pacote de televisão.
Quando desço para o primeiro andar e entro em casa dela, a luz é fúnebre
e um silêncio constrangedor espalha-se pelo ar. Durante o jantar ela diz-me que
tem saudades do marido e que acha o tempo de hoje em dia estranho.
Mais tarde, vou dormir e fico a pensar, estarrecido, pois imagino o que
é sentir saudades dos mais próximos, todos os nossos amigos terem morrido e o
presente ser completamente diferente daquilo a que estávamos habituados.
Rafael Mendes, 9.º B, n.º 17.
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