AMANHÃ RECOMEÇAMOS (1)
|
Fotografia: @André Sampaio |
Há muito
tempo, quando os anos ainda não se contavam, num lugar longínquo da Ásia,
dominava o reino de Ashka. Era um lugar pacífico. No entanto, existia uma jovem
escrava, mulata, baixa, cabelos longos e encaracolados, tão maltratada pelo seu
senhor, que pensava ser melhor morrer.
Certo
dia, após ter sido chicoteada tantas vezes de seguida, que parecia terem passado
anos, ela decidiu fugir. Correu e correu e, quando acabaram as suas forças,
viu-se numa caverna com cristais tão brilhantes quanto o próprio sol. No meio
da mesma, habitava uma árvore, com frutos tão encantadores como as mais belas
joias.
A
tentação era tão forte, que quase não conseguia resistir. Então, a pobre
escrava começou a ouvir: «Come-me, come-me, vá despacha-te! Do que estás à
espera?!». Jogou a mão ao fruto e comeu como se não houvesse amanhã. De
seguida, sentiu uma energia a fluir pelo seu corpo e ouviu uma voz rouca,
similar ao gemido de um fantasma, que dizia repetidamente: «Amanhã
recomeçamos.» Confusa e desnorteada, a escrava repetiu também a frase e, mal
dando tempo para piscar os olhos, já estava a ser chicoteada.
A noite
caiu. A escrava fechou os olhos e exclamou para si: «Oh!». Ela viajara no
tempo. A sua confiança ganhara o tamanho de uma galáxia e, na noite seguinte,
quando as estrelas dominavam o vasto céu, tentou fugir da escravatura,
repetindo vezes sem conta: «Amanhã recomeçamos.» A viagem fora, porém, tão
longínqua, que agora ela contava sessenta anos.
Devido à
sua avançada idade, já não tinha serventia como escrava e, por isso, foi jogada
aos cães esfomeados. Desesperada, atordoada pela luz do dia, gritou sem parar
até lhe faltar a voz: «Amanhã recomeçamos. Amanhã recomeçamos. Amanhã…».
Percebendo que não funcionava, caiu desolada, perdendo as suas forças, e morreu
ali mesmo, devorada pelos cães famintos.
André
Sampaio, 9.º B, n.º 2.
(1) Este texto teve como fonte de inspiração
o conto «A Aia», de Eça de Queirós.